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Zerocalcare, o pseudônimo do italiano Michele Rech, despontou como o quadrinista mais icônico de sua geração ao transformar vivências autobiográficas, deboche e críticas sociais em narrativas gráficas que conquistaram leitores dentro e fora da Itália. Sua carreira se destaca não só pelo sucesso estrondoso de obras como “La profezia dell’Armadillo”, “Kobane Calling” e as séries animadas da Netflix, mas também por sua postura política frontal e controversa. A recente polêmica com Hideo Kojima, marcada pela remoção de uma foto conjunta nas redes, reacendeu discussões sobre os limites do engajamento de artistas em causas sensíveis e os impactos disso em suas trajetórias públicas.

Do Underground ao Mainstream com Humor, Dor e Política
Zerocalcare é mais do que um nome artístico. Ele virou um espelho de uma geração que cresceu em meio a desilusões políticas, empregos instáveis, crises de identidade e uma Itália em constante transformação. Poucos quadrinistas italianos conseguiram romper tão rápido as barreiras do idioma como Michele Rech, nascido em Arezzo em 1983, que fez do bairro romano de Rebibbia não só sua casa, mas também o pano de fundo emocional e geográfico de quase tudo que desenha.
Sua trajetória começou nos cantos mais alternativos da cena cultural — fanzines, blogs, tiras caseiras — e foi ganhando corpo com histórias que misturam lembranças pessoais, referências afiadas à cultura pop, dilemas de um adulto millennial e um olhar sempre atento às angústias do cotidiano. O traço é rápido, às vezes torto, mas cheio de intenção. E o uso de personagens animalescos, como o tatu que representa sua consciência, virou uma assinatura visual que amplifica tanto o humor quanto o drama.
Com mais de um milhão de exemplares vendidos só na Itália e obras que migraram dos quadrinhos para o cinema e o streaming global, Zerocalcare se tornou um dos nomes mais relevantes da nona arte europeia. Mais do que um autor de sucesso, ele é uma figura que provoca, emociona e incomoda — sempre em movimento entre o pessoal e o político, entre o íntimo e o coletivo.
📸 A foto que virou silêncio: Kojima, Kobane Calling e o peso das imagens
Em novembro de 2025, durante o Lucca Comics & Games — um dos maiores festivais europeus dedicados a quadrinhos e games — Zerocalcare protagonizou um momento que rapidamente ultrapassou os limites do evento. Ao lado de Hideo Kojima, criador das sagas Metal Gear e Death Stranding, o quadrinista italiano posou para uma foto que parecia inofensiva: Kojima segurava uma edição japonesa de Kobane Calling, a graphic novel em que Zerocalcare narra sua viagem ao Curdistão, acompanhando a resistência contra o Estado Islâmico.

A imagem viralizou, acumulando milhões de visualizações em poucas horas. Mas o que parecia um gesto de admiração virou polêmica. Internautas turcos e veículos de mídia do país reagiram com críticas ferozes, acusando Kojima de apoiar, ainda que indiretamente, organizações consideradas terroristas pelo governo de Ancara — já que Kobane Calling retrata e humaniza combatentes das YPG, grupo aliado do Ocidente, mas com vínculos históricos com o PKK.
Sem explicações públicas, Kojima apagou a foto. O silêncio foi interpretado como uma tentativa de evitar desgaste político e comercial. Zerocalcare, por sua vez, reagiu como costuma fazer: com ironia. Em um vídeo, comentou o episódio com seu humor ácido, criticando o constrangimento internacional diante de obras que se propõem a contar histórias reais, mesmo quando elas incomodam. O vídeo pode ser visto no Instagram do cartonista
Esse episódio se soma a outros momentos controversos da carreira do autor. Quando a série Strappare lungo i bordi estreou na Netflix em 2021, a presença de bandeiras das YPG e do PKK em algumas cenas gerou protestos e pedidos de boicote. Zerocalcare não recuou. Para ele, contar essas histórias é uma forma de solidariedade, não propaganda.
No fim das contas, o caso Kojima mostra como uma imagem pode carregar mais do que admiração — ela pode se tornar símbolo, bandeira e arma num campo de batalha. E os quadrinhos têm esse poder: traduzem temas urgentes e complexos numa linguagem acessível, mas nem por isso menos explosiva. Quando a arte se posiciona, o desconforto é inevitável. E talvez seja justamente aí que ela cumpre seu papel.
Principais Obras de Zerocalcare:
La profezia dell’Armadillo (A Prófecia do Tatu – Editora Posseidon)

Sinopse:
Em “La profezia dell’Armadillo” (A Profecia do Tatu), lançado originalmente em 2011, Zerocalcare apresenta sua autoficção fundadora. O protagonista, Zero, transita entre os desafios cotidianos da juventude periférica romana e a dolorosa notícia da morte de uma amiga de infância. Seu interlocutor existencial é nada menos que um tatu antropomórfico, representação gráfica de sua consciência crítica, tagarela e muitas vezes sabotadora.
O enredo mistura eventos banais, laços de amizade, crises existenciais e uma profunda reflexão sobre o luto, costurados por flashbacks e sessões de psicanálise improvisada com o tatu que, mais do que conselheiro, muitas vezes é um espelho das angústias do protagonista.
Estilo e características:
O traço de Zerocalcare é deliberadamente cartunesco e vibrante, com desenhos ligeiramente desproporcionais e expressão corporal acentuada, reforçando o tom tragicômico. As vinhetas mesclam elementos fantásticos — como o próprio tatu falante — a um hiperrealismo doloroso no tratamento do tema da morte e das memórias juvenis. Além disso, o ritmo narrativo é marcado por diálogos afiados, referências pop e a alternância entre delírio e crueza.
Adaptação Live-action:
Em 2018, “La profezia dell’Armadillo” chegou aos cinemas sob direção de Emanuele Scaringi. O filme, exibido na 75ª Mostra de Veneza, é centrado no dilema existencial do jovem Zero enquanto tenta lidar com a morte de Camille, uma amiga de infância, mediado por diálogos filosóficos com o tatu. Embora a produção tenha sido elogiada pela fidelidade ao espírito do original e pelos personagens bem construídos, parte da crítica pontuou que o longa ficou aquém da força plástica e do humor anárquico dos quadrinhos, além de enfrentar limitações orçamentárias e de adequação ao tom introspectivo de Zerocalcare.
Kobane Calling (Editora Nemo)

Sinopse:
Publicado em 2015, “Kobane Calling: Como fui parar no meio da Guerra na Síria” surge da experiência pessoal de Zerocalcare como correspondente ao Curdistão sírio, documentando em forma de quadrinhos o cotidiano durante o cerco de Kobane pelas forças do Estado Islâmico. O autor narra as dificuldades para atravessar fronteiras, as diferenças culturais, a solidariedade e a resistência dos curdos — em especial a força simbólica das mulheres combatentes das YPJ — alternando entre o riso e o choque da guerra.
A HQ, autobiográfica e jornalística, tornou-se referência por combinar reportagem de campo, crítica contra a simplificação midiática do Oriente Médio e questionamentos sobre a natureza da propaganda ocidental. Zerocalcare assume explicitamente seu viés: ao invés de tentar neutralidade, faz declarações de empatia e busca humanizar todos os lados, ainda que consciente dos riscos desse posicionamento.
Estilo e características:
A obra apresenta desenhos em preto e branco, com traço veloz e expressivo, em tom cartunesco, mas dotados de notável capacidade de transmitir sentimentos. Zerocalcare faz uso de recursos como o humor corrosivo e autorreferencial para aliviar o peso dos temas bélicos e denuncia sempre a complexidade geopolítica, abrindo espaço para críticas ao governo turco, ao fundamentalismo islâmico e também ao olhar superficial da mídia europeia sobre a região.
Polêmicas e repercussão política:
A notoriedade de “Kobane Calling” trouxe junto a Zerocalcare uma avalanche de críticas e acusações por parte de setores ligados ao governo turco, que o acusaram de apologia a organizações consideradas terroristas. Embora nunca tenha sofrido processo por terrorismo, Zerocalcare foi e segue sendo alvo de censura e campanhas de boicote, principalmente em redes sociais e veículos alinhados à visão oficial da Turquia, contexto intensificado pela recente polêmica com Hideo Kojima.
Strappare lungo i bordi (Entrelinhas Pontilhadas – Netflix)

Sinopse:
Uma das mais bem-sucedidas adaptações animadas da Netflix, “Strappare lungo i bordi” (Entrelinhas Pontilhadas, 2021) nasce da colaboração entre Zerocalcare, as produtoras Movimenti Production e DogHead Animation, e a editora Bao Publishing. O enredo acompanha Zerocalcare (dublado pelo próprio autor), enquanto revisita, durante uma viagem de trem com dois amigos (Sarah e Secco), episódios marcantes de sua transição da infância à vida adulta, sempre intercalados por conversas existenciais com o tatu “Armadillo”.
A narrativa é fragmentada por memórias, anedotas, desencontros amorosos e principalmente pelo típico “auto-boicote” do protagonista, que muitas vezes prefere fugir dos problemas ao enfrentá-los. As linhas pontilhadas, literalmente, delimitam os espaços para possíveis cortes e mudanças de rumo, uma metáfora para as decisões não tomadas no limiar dos trinta anos.
Estilo e características:
A série é inovadora ao combinar o humor melancólico do autor, diálogos existenciais, abundantíssimas referências pop (de anime a realities, de música punk à cultura millennial) e uma montagem quase frenética. Zerocalcare, em sua voz rouca, dubla quase todos os personagens, exceto o tatu (feito por Valerio Mastandrea), atualizando uma tradição narrativa de monólogo interior em animação para adultos europeia. No Brasil a excelente dublagem foi feita por Manolo Rey.
Controvérsias:
Já em sua estreia, Zerocalcare enfrentou novo “panorama turco” ao ser acusado pela imprensa daquele país de promover símbolos do PKK e das YPG, cujas bandeiras aparecem discretamente em algumas cenas. Isso levou a ataques nas redes, debates sobre censura e liberdades artísticas, e reacendeu a discussão sobre o papel político do entretenimento adulto em plataformas globais.
Questo mondo non mi renderà cattivo (Este Mundo Não Vai Me Derrubar – Netflix)

Sinopse:
Lançada em junho de 2023, “Este Mundo Não Vai Me Derrubar” (“Questo mondo non mi renderà cattivo”) mantém a base da série anterior, inserindo novos personagens e ampliando o grau de engajamento político direto. O fio narrativo gira em torno do retorno de Cesare, um velho amigo do protagonista, recém-saído de décadas de reabilitação. Incapaz de se reconhecer em seu bairro, Cesare torna-se símbolo das transformações urbanas, da precariedade e das tensões entre imigrantes e xenófobos locais.
Zero, entre tentativas de ajudá-lo e o surgimento de um abrigo ameaçado por nacionalistas, atravessa temas como dependência química, empatia, polarização política e o colapso das relações interpessoais no mundo capitalista contemporâneo.
Estilo e características:
A animação mantém o traço inconfundível de Zerocalcare e um roteiro que alterna drama agudo, tiradas sarcásticas e potentes críticas sociais. Destaque para a capacidade de condensar múltiplos assuntos, do micro ao macro, em episódios curtos e cheio de referências à cultura pop, cultura política e questões de pertencimento na Itália de hoje.
Dimentica il mio nome ( Esqueça o meu nome – Editora Posseidon)

Sinopse:
“Esqueça o meu nome”, lançado em 2014 e recém-chegado ao Brasil, é uma graphic novel onde Zerocalcare utiliza o luto pelo falecimento de sua avó materna como pretexto para uma viagem pelo passado desconhecido de sua família. Enquanto tenta desvendar segredos antigos e origens misteriosas, o protagonista é guiado por uma sucessão de criaturas surreais, memórias e dúvidas existenciais – numa jornada que combina realismo mágico, humor autodepreciativo e reflexões sobre identidade e amadurecimento.
Estilo e características:
A obra mescla traços de diário íntimo, elementos de fantasia, personagens animalescos e cenas do cotidiano, tudo costurado por uma estética visual onde cores, sombras e silhuetas enfatizam o desconcerto emocional do autor. É, segundo os críticos, “um conto hipnótico sobre a família, o crescimento e o medo de virar adulto em uma época sem certezas”.
Outras Obras Relevantes e Expansão Literária
Entre outras graphic novels aclamadas, destacam-se títulos como “Scheletri” (Esqueletos, 2020), que aprofunda temas como misoginia, tentativas de feminicídio, homofobia e vida na periferia através da autobiografia do autor, e “No Sleep Till Shengal”, um novo diário de viagem ao Curdistão que amplia o enfoque político-social de “Kobane Calling”. Em todas essas obras, Zerocalcare utiliza o recurso de “autoficção”, combinando fatos biográficos, devaneios e crítica social, sempre com uma ironia que dialoga com a tradição oral e escrita do mediterrâneo.

A Força Visual e Narrativa de Zerocalcare no Cinema, Streaming e TV
| Obra original | Mídia adaptada | Ano/Lançamento | Produtor/Diretor | Principais destaques | Recepção |
|---|---|---|---|---|---|
| A Profécia do Tatu | Filme live-action | 2018 | Emanuele Scaringi | Seleção Festival de Veneza; estética fiel | Mista |
| Kobane Calling | Documentário, eventos | 2016-2023 | Diversos | Não há versão longa, mas vários documentários | Elogiada |
| Entrelinhas Pontilhadas | Série animada Netflix | 2021 | Movimenti Prod., Zero, BAO | Top 2 global; Nastro d’Argento, Globo d’Oro | Aclamada |
| Este Mundo Não Vai Me Derrubar | Série animada Netflix | 2023 | Movimenti Prod., Zero, BAO | Aborda imigração, política e amizade | Aclamada |
A chegada de Zerocalcare à Netflix foi o divisor de águas para sua popularidade global. Suas animações, com trilhas modernas, linguagem livre e visual que emula a estética dos quadrinhos, conquistaram o público ao transformar experiências pessoais em narrativas com eco universal. Isso se reflete nos inúmeros prêmios, exibições de destaque e na confirmação de novas séries para 2026, incluindo a aguardada “Será todo para mí”, recém-anunciada e centrada em traumas familiares e masculinidade tóxica.
O universo audiovisual criado por Zerocalcare, contudo, nunca abandona o “DNA quadrinístico”, servindo de ponte para leitores que chegam à HQ após ver as séries e para fãs de HQ que as reconhecem como legítimas expansões do universo e voz interior do autor.
Polêmicas, Engajamento Político e Repercussões na Carreira
Engajamento explícito: “Não sou imparcial”
Zerocalcare sempre rejeitou a neutralidade. Suas entrevistas, quadrinhos e séries expõem sem subterfúgios o apoio a pautas progressistas, à defesa dos direitos humanos e à denúncia de elementos conservadores na política italiana e europeia. “Não sou imparcial”, declarou a imprensa italiana recentemente, reiterando que artistas têm responsabilidade de desafiar discursos dominantes e influenciar o imaginário coletivo.
Ao abordar temas como resistência curda, imigração, toxicidade masculina, crise de pertencimento, feminismo e homofobia, Zerocalcare coloca sua audiência diante de dilemas reais — mas paga o preço do esgotamento e de ataques orquestrados, especialmente de setores turcos ou conservadores da mídia europeia. Seu relato de síndrome do impostor e incertezas existenciais revela que o autor é também um produto de seu engajamento: a ansiedade, o medo e a dúvida aparecem tanto como temas quanto como motores criativos.

O caso das insígnias curdas: censura transnacional e eco midiático
Desde “Kobane Calling”, mas especialmente depois da adaptação para animação de “Entrelinhas Pontilhadas” e de “Este Mundo Não Vai Me Derrubar”, a presença de bandeiras ou símbolos ligados às YPG/PKK motivou retaliações internacionais, boicotes virtuais e ameaças à integridade física e psicológica do autor. O episódio mais recente, da foto apagada por Kojima, talvez seja o auge dessa reatividade geopolítica, pois envolve o cruzamento de três universos de fãs — gamers, leitores de HQ e ativistas políticos — e demonstra como a cultura pop tornou-se terreno fértil para confrontos ideológicos globalizados.
Efeito na carreira
Apesar da enxurrada de críticas e da restrição de circulação das obras em alguns mercados (como a Turquia), o impacto reputacional geralmente é positivo: as polêmicas alimentam debates sobre liberdade de expressão e ampliam o alcance midiático de Zerocalcare. Não à toa, suas publicações continuam alçando vendas recordes, e o autor figura em rankings internacionais de mais influentes da nona arte europeia contemporânea — embora, pessoalmente, relate o efeito ambíguo desse tipo de exposição, ora fortalecendo sua posição de voz dissidente, ora sugerindo trajeto “cansativo de estar sempre na linha de frente contra o cinismo e o desencanto coletivo”. No Brasil o seu impacto vai mais pelas séries da Netflix, que rendeu bons “reels” e “memes” nas redes sociais. Já nos quadrinhos, seu sucesso ainda é tímido, apesar das principais obras estarem publicadas no país

Zerocalcare, a Fresta Entre o Drama e o Riso
A trajetória de Zerocalcare só pode ser compreendida como síntese de uma geração que não aceita mais fronteiras entre vida pessoal, engajamento público e narrativa artística. As polêmicas – seja a foto com Kojima, seja o embate internacional com o governo turco – não fazem dele um pária do mercado, mas um catalisador das discussões mais urgentes sobre a responsabilidade do autor, o papel das artes gráficas no enfrentamento de temas globais e os limites/destinos de quem recusa a neutralidade em nome da coerência autobiográfica.
Ler Zerocalcare é como abrir um espelho em quadrinhos: a gente ri das próprias manias, reconhece os amigos nas falhas e percebe que a vida, com todas as suas linhas tortas e pontilhadas, só revela algum sentido quando temos coragem de atravessá-la — mesmo sabendo que o desfecho pode ser tão incerto quanto necessário.

